Aos 5 anos de idade, ela acordava cedo todos os dias para assistir ao Show da Xuxa. Usava roupa da Xuxa, tênis e sandálias da Xuxa, acessórios da Xuxa, cosméticos da Xuxa. Atormentava a vida dos pais cada vez que a Xuxa lançava um novo LP. Sonhava em passear na nave da Xuxa e tomar café da manhã com a Xuxa. Sonhava também em ser Paquita e sabia todas as músicas e coreografias de cor.
Um dia, ao chegar da escola, sai em busca da sua fita cassete das Paquitas para praticar um pouco antes de fazer as tarefas de casa e encontra, colado na fita, um adesivo escrito Chico Buarque, com a letra do pai. Ingenuamente, arranca fora o adesivo de uma só força. "Chico Buarque? Quem é esse? Essa é minha fita das Paquitas!" Coloca a fita para tocar e leva o primeiro grande susto de sua vida: o som quem vem dela não se parece em nada com o "Quem quer pão, pão, pão, pão? Bom estar contigo na televisão...". No lugar da alegre melodia das garotas, saía uma música velha, chata, parada, na voz de um homem claramente velho, chato e parado, esperando uma tal de banda velha, chata e parada passar. Banda? Que história é essa de banda, meu Deus?
Ela chora. Ela se desespera. Ela quer acordar desse pesadelo. Se naquele tempo os telefones celulares existissem e fossem objetos tão corriqueiros como são hoje, ela teria ligado imediatamente para o pai, a cobrar, sem dó nem piedade, para perguntar que droga de Chico Buarque era aquele gravado na sua fita das Paquitas. Tudo o que podia fazer, no entanto, era chorar. Chorar e procurar um LP da Xuxa para ouvir enquanto se lamentava. Vida injusta!
O tempo passou, e o trauma foi superado sem maiores dificuldades. Na adolescência, ela descobriu Legião Urbana, Paralamas, Barão Vermelho, Titãs. Contraditoriamente, como qualquer adolescente daquele tempo, descobriu que a melhor banda do mundo era na verdade Backstreet Boys, que o melhor canal de televisão do mundo era a MTV e que a melhor maneira de utilizar o dinheiro que ganhava do pai toda semana era no shopping, no McDonald's e em revistas e pôsteres dos artistas que tanto admirava. Enquanto isso, seus pais continuavam ouvindo as músicas daquele velho que arruinara com seu sonho de infância.
Lá pelos 16 anos, já se achando muito adulta, naturalmente, ela resolveu dar uma conferida nos discos do Chico Buarque que havia em sua casa. Escondido, é claro. Ouviu uma vez. Ouviu outra vez. E de novo. E de novo. Achou que seria legal ter as letras, para poder cantar junto. Leu uma por uma. Cantou uma por uma. E fez isso vários dias seguidos.
Deu o braço a torcer. Não que o velhinho é bom? Depois disso, descobriu Tom Jobim, Toquinho, Vinícius, Caetano, Gil, Djavan e por aí vai. Sem se dar conta, se tornou fã, amante e defensora da música popular brasileira.
Aos 17, entrou na faculdade de Letras. Mergulhou na literatura brasileira. Descobriu sua mais nova paixão. Descobriu também que aquele mesmo Chico Buarque das músicas escrevia livros. Escreveu um trabalho de conclusão de curso e uma dissertação de mestrado sobre os romances dele. Comprou todos os discos, dvds e livros sobre o assunto que encontrou pela frente. Abarrotou as prateleiras de casa com uma biblioteca de primeira qualidade.
Hoje, aos 30, ela se recorda com nostalgia e nenhuma vergonha das tardes que passava dançando ao som da rainha dos baixinhos e suas garotas. Ela se diverte ao lembrar-se do seu primeiro grande trauma. Ela chora de saudade do pai, que agora mora longe. Ela agradece à mãe, por ter lhe influenciado tanto no seu gosto pela arte e pela cultura. Ela se emociona ao ouvir certas canções do Chico Buarque que lhe tocam o fundo da alma. Ela lê e se dedica com afinco à difícil tarefa de formar novos leitores e novos admiradores de todas as formas de arte.
Ela entende que o amadurecimento é um processo longo e cheio de etapas - todas elas inesquecíveis e indispensáveis. Agora ela só deseja continuar aprendendo e crescendo, com o pai, com a mãe, com os amigos, com os alunos, com os livros... pois tem a certeza de que se chegar o dia em que acreditará saber tudo sobre todas as coisas, sua vida terá chegado ao fim.