sábado, 17 de dezembro de 2011

Repúdio

Ontem, 16/12/11, e eu um grupo de amigas fomos ao  Long Play , casa noturna que fica na Sarmento Leite, quase esquina com a Lima e Silva, na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Tinha tudo para ser uma noite perfeita, já que íamos exclusivamente para assistir ao show de uma aluna minha, cujo nome não vou citar aqui para não vinculá-lo ao desrespeito que presenciamos no local. De fato, tudo transcorreu perfeitamente durante o show, pelo qual esperávamos ansiosamente há semanas, com ingressos comprados com bastante antecedência. Por volta da meia noite, uma de minhas amigas pegou as comandas para pagar e irmos embora. Ao passar o cartão de débito, a maquininha, uma dessas queridas que volta e meia nos deixam numa saia justa em estabelecimentos comerciais, deu a seguinte mensagem: ERRO DE CONEXÃO. Ora, não precisamos ser gênios para entender que uma mensagem dessa NÃO SIGNIFICA QUE NÃO HÁ SALDO NA CONTA PARA SER DEBITADO. Certo? 

A funcionária do bar tentava repetir a operação quando o GERENTE da casa resolver dar o ar de sua graça. Irônica e desrespeitosamente, o sujeito, que diz chamar-se Rafael, dispara uma sequência de desaforos para cima da minha amiga, afirmando que ela era uma “chinelona”, que não tinha dinheiro para pagar a conta e teria de pedir dinheiro emprestado pois não sairia do bar sem pagar. Minha amiga responde a ele dizendo que há dinheiro na conta e que o problema é na máquina, mostrando a mensagem da mesma. O gerente pega um maço de comprovantes de pagamentos com cartão saídos da mesma máquina, para “provar” que a máquina funciona e que o problema era que nós não tínhamos dinheiro. Não satisfeito com o desrespeito, ele ainda parte para a violência, se aproxima de nós e diz: “não tá satisfeita? bate aqui!”, dando tapinhas no próprio rosto, esperando que alguém seja ingênuo o suficiente para agredi-lo fisicamente (muito embora não faltasse vontade). A maquina seguiu passando a mesma mensagem de que não havia conexão. Pagamos a conta em dinheiro e nos retiramos. O tal gerente veio atrás de nós, repetindo desaforos e avançando para bater na minha amiga, afirmando que até menor de idade ela era (o que é mentira), julgando-a pela aparência e mostrando-se assim, além de um grande idiota, estúpido e grosseiro, também preconceituoso.

Enfim, posso escrever um livro contando em detalhes o que aconteceu, mas nada será capaz de demosntrar o desaforo, o desrespeito e a humilhação que presenciamos no Long Play, por parte do sujeito que deveria zelar pelos clientes e fazê-los sentir-se bem e com vontade de voltar ao local.
Por meio deste breve relato, manifesto meu repúdio à atitude do gerente do Long Play.  Simplesmente não voltar mais ao bar não basta. É preciso que o maior número de pessoas saiba que o senhor Rafael, que diz ser gerente e dono do bar, é um homem mal educado, arrogante, prepotente, preconceituoso e despreparado para exercer a função própria do cargo que ocupa.

Ao sair do bar, fomos jantar do Pizza em Fatias, onde pagamos nossa conta com o mesmo cartão de débito com o qual tentamos pagar a comanda do Long Play, e não tivemos nenhum problema, nem com o cartão, nem com a gerência. 

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Quanto vale?

Acordar às 6h30 todos os dias: difícil

Enfrentar o congestionamento da BR 116 três vezes por semana: um inferno

Abdicar de tempo livre em nome do trabalho: chato, mas necessário

Driblar hiperatividade, déficit de atenção, bullying, celulares com acesso a internet SEMPRE conectados e todos os outros males da adolescência do século XXI: como faz?!

Receber uma cartinha linda escrita por TODA uma turma de 8ª série ao final de uma aula LIGHT sobre ORAÇÕES SUBORDINADAS ADJETIVAS: não há cansaço, sono, mal humor que resista; simplesmente NÃO TEM PREÇO.


segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Do arrepio...

É curioso como certas coisas que uma vez passaram despercebidas na nossa vida ganham força e sentido de repente. Quem nunca se flagrou emocionado ao ouvir aquela canção velhinha, considerada brega quando a mamãe ouvia e cantarolava?

Há coisas que necessitam uma certa maturidade para serem compreendidas no seu sentido mais profundo. É preciso viver para sentir na pele aquele arrepio ao se deparar com uma obra como essa:


Sempre curti essa dupla, desde muito antes de imaginar a possibilidade de vir morar na terra deles. Ontem, ao assistir o belo espetáculo de grandes amigos num bar em Porto Alegre, me emocionei e senti um calafrio gostoso ao ouvir a interpretação de um deles para Paixão

Esse é o prazer maior que a arte nos proporciona: a identificação seguida de emoção e todos os efeitos que esta pode provocar numa pessoa minimamente sensível. É um prazer que extrapola questões estéticas. É um prazer que te faz chegar em casa, buscar a canção, ouvir e ouvir de novo, ler e reler a letra, maravilhando-se com o fato de que você também sente aquelas mesmas coisas e também pode dedicar aquelas palavras a alguém. 

E tem gente que ainda pergunta para que serve a arte... 

"Tens um não sei que de paraíso
E o corpo mais preciso
Que o mais lindo dos mortais.
Tens uma beleza infinita
E a boca mais bonita
Que a minha já tocou."


terça-feira, 26 de julho de 2011

Desafio

Evandro Oliveira, autor do blog Sabor da Letra, respondeu ao desafio e lançou o mesmo para quem se interessasse. Gostei.




1 - Existe um livro que você leria e releria várias vezes?
Cem Anos de Solidão – Gabriel Garcia Marquez

2 - Existe um livro que você começou a ler, parou, recomeçou, tentou e tentou, mas nunca conseguiu ler até o final?
Sim. Germinal – Émile Zola

3 - Se você escolhesse um livro para ler para o resto da sua vida, qual seria ele?
Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis

4 - Que livro você gostaria de ter lido, mas que, por algum motivo, nunca leu?
Crime e Castigo – Dostoiewski

5 - Qual livro que você leu cuja "cena final" você jamais conseguiu esquecer?
Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa
“O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.”

6 - Você tinha o hábito de ler quando criança? Se lia, qual tipo de leitura?
Sim. O primeiro livro que me fez chorar de emoção foi Meu Pé de Laranja Lima – José Mauro de Vasconcellos. O salto entre infanto-juvenil e os clássicos se deu com Machado de Assis.

7 - Qual o livro que você achou chato, mas ainda assim o leu até o final?
Morte em Veneza – Thomas Mann

8 - Indique alguns dos seus livros favoritos.
A Chave da Casa – Tatiana Salem Levy
Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis
Dom Casmurro – Machado de Assis
Budapeste – Chico Buarque
Grande Sertão: Veredas – Guimarães Rosa
Cem Anos de Solidão – Gabriel Garcia Marquez
Poemas de Álvaro de Campos – Fernando Pessoa
Hamlet – Shakespeare
A Casa dos Budas Ditosos – João Ubaldo Ribeiro
Atonement – Ian McEwan
O Apanhador no Campo de Centeio – J.D. Salinger
The Bluest Eye – Toni Morrison
Um Bonde Chamado Desejo – Tennessee Williams
Lavoura Arcaica – Raduan Nassar

9 - Qual livro você está lendo no momento?
Relendo Chico Buarque – Estorvo, Benjamim, Budapeste e Leite Derramado; Jorge Amado – Capitães da Areia; George Orwell – A Revolução dos Bichos. Professora de Literatura aspirante a doutoranda em Literatura Brasileira é assim, lê mil coisas ao mesmo tempo...

***

E aí? Alguém topa o desafio?

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Happy end... or beginning?

"When you realize you want to spend the rest of your life with somebody, you want the rest of your life to start as soon as possible."


O resto da minha vida começou há mais ou menos nove meses. 

E com ele vieram: 

Tranquilidade 

Amor

Vontade de viver

Vontade de crescer

FELICIDADE.

Obrigada por me mostrar que é possível.


Eu te amo.






quarta-feira, 29 de junho de 2011

The mirror of my dreams...

"Me I'll take her laughter and her tears
And make them all my souvenirs
For where she goes I've got to be
The meaning of my life is she..."



segunda-feira, 27 de junho de 2011

Welcome Winter with Hot Cocoa!

A cozinha é o espaço da casa que mais gosto depois da cama. Adoro cozinhar, criar receitas próprias, adaptar receitas alheias... Poucas coisas me fazem tão bem quanto ver o sorriso de satisfação das pessoas que amo ao provar algo que eu mesma preparei, sempre com carinho e capricho.

O blog, espaço do qual também gosto bastante, sempre foi uma espécie de consultório sentimental; uma válvula de escape para desabafos, recados subliminares, comemorações. Mas, em mais de um ano de vida do Pecado... , nunca escrevi um post compartilhando uma receita da qual tenha gostado muito.

Assim, para marcar a chegada definitiva do inverno, no primeiro dia de frio desumano, com direito a ventos perturbadores em Porto Alegre, decidi publicar aqui uma receita muito simples que coloquei em prática hoje e fez muito sucesso: chocolate quente. Aquele, cremoso e gostoso, que esquenta e adoça até as almas mais gélidas. 

Lá vai:

Ingredientes
2 xícaras de leite
3 colheres de sopa de chocolate em pó (aquele dos frades... nada Nescau, Toddy ou assemelhados)
4 colheres de sopa de açúcar
1 colher de sopa de Maizena
1 caixinha de creme de leite

Modo de Preparo
No liquidificador, bata o leite, o chocolate em pó, o açúcar e a Maizena.
Leve ao fogo baixo, mexendo sempre, até ficar bem quente.
Antes de ferver, acrescente o creme de leite e siga mexendo até ficar bem cremoso.

Fica uma delícia com chantilly ou, como eu prefiro, apenas umas bolinhas de marshmellow...

E não é que o inverno nem parece tão ruim assim?

Welcome, Mr. Winter!



segunda-feira, 13 de junho de 2011

123 anos do Grande Fingidor




Depois de um alguns dias impregnados de Fernando Pessoa, antes de outros que estão por vir com meus queridos alunos da 8ªB do Guanella, deixo aqui minha homenagem ao poeta português, mestre infinito como o mar infinito. O meu favorito entre os mestres infinitos.

Aí vai uma seleção de trechos de um belo e longo poema, que, de certa maneira, explica um pouco da multiplicidade de personalidades que encontramos em sua obra. Momento de prazer estético inenarrável. Sem mais delongas, voilà.


PASSAGEM DAS HORAS
 
(Álvaro de Campos)

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

(...)

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consangüinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

(...)

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri. 
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos, 
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse. 
Amei e odiei como toda gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.

(...)

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

(...)

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia, 
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus. 
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.

(...)

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

(...)

Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus. (...)

quarta-feira, 8 de junho de 2011

E quem um dia irá dizer...

... que existe razão nas coisas feitas pelo coração?




E quem irá dizer que não existe razão?

A eterna contradição humana!

Há 4, 5 meses atrás, aqui na grande Porto Alegre, o assunto que surgia nos momentos em que não se tinha mais assuntos relevantes era o calor. "Meu Deus, que calor é esse?"; "Esta cidade é um inferno! Quero me mudar para o Pólo Norte!" De fato, o verão por aqui é desumano. Para quem é obrigado a permanecer na cidade, sem poder dar aquela escapada para o litoral, é difícil suportar as temperaturas escaldantes. E o jeito é apelar para o ar condicionado de casa, do supermercado, do shopping... Acordamos pela manhã já suados; tomamos um banho para refrescar e parece inútil. Chegamos ao fim do dia esgotados. O calor cansa.  Mas aquela cerveja gelada no barzinho com mesas na calçada compensa.

Hoje, no início de junho, o inverno nem começou oficialmente, e o frio já está intenso. E agora os tópicos de "small talk" por aqui são "Que frio!"; "Que saudade do verão!"; "Vou me mudar para o Nordeste!". Acordar cedo é uma tortura. Gripes, resfriados, dores de garganta nos derrubam várias vezes ao mês. Para manter o corpo aquecido, café, chocolate quente, vinho tinto, massas, sopas... E, no fim das contas, a gastronomia de inverno é uma delícia. O frio também colabora com a nossa aparência: a maquiagem não derrete; a chapinha não é arruinada pelo suor; casacos, botas, cachecóis deixam as mulheres mais elegantes.

O inverno é a estação da elegância, assim como o verão é a estação da descontração. Cada uma com seus encantos e, é claro, seus desencantos. Devo confessar, que, curitibana de nascimento e de coração, sou muito mais acostumada às temperaturas glaciais do que ao calor sertanejo. Logo, me sinto, de verdade, no mármore do inferno em Porto Alegre, de dezembro a março, mais ou  menos. No inverno, me sinto em casa, por mais que sofra para acordar cedo e seja pega de surpresa por gripes com muita frequência. Ainda assim, tenho feito o exercício de tentar aproveitar as delícias e não me aborrecer com os incômodos de cada época ou qualquer outro aspecto da minha vida.

O interessante é observar o quanto as pessoas são insatisfeitas com tudo que as cerca. Quando está frio, querem calor. Quando está calor, querem frio. Se chove, tem muita umidade; se não chove, é muito seco. Se estão casados, querem ficar solteiros; os solteiros, querem se casar. Se moram no Brasil, sonham em ir para o exterior; os "exilados" só desejam voltar para casa. A lista de antíteses é infinita. 

Por que será que é tão difícil aproveitar o lado bom de cada coisa? Para responder a essa pergunta, só me ocorre citar Machado de Assis: é a eterna contradição humana!

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Tempo

Na mitologia grega, Cronos era o mais jovem da segunda geração dos Titãs, filho de Urano - o Céu estrelado -  e Gaia, a Terra. Tornou-se senhor do Céu castrando o próprio pai à foice, a pedido da mãe. Casou-se com a própria irmã e com ela teve seis filhos, entre eles o famoso Zeus. Com medo de perder seu trono, engoliu um por um de seus filhos, com exceção de Zeus, que no fim das contas consegue se livrar do pai com o apoio de Métis - a Prudência, tornando-se, assim, senhor do Céu. 

Assim como o titã grego, o Tempo é uma divindade suprema. Ele pode nos engolir, mas também pode nos ensinar lições impagáveis.

Driblando sua "fome", aprendemos a encarar a vida com serenidade e, por que não dizer, prudência. Nos momentos mais difíceis, é a serenidade que nos mantém firmes, com a cabeça no lugar e os pés no chão, evitando o desespero e o caos.

A sabedoria popular diz que o tempo é o melhor dos remédios. As pessoas, hoje, se lamentam constantemente pela falta dele. Acredito que o problema da humanidade não é falta de tempo, mas sim dificuldade, até mesmo incapacidade, de lidar com ele. É preciso aceitar a passagem do tempo e tudo que vem com ela. O tempo nos traz dor, mas também traz alívio; nos traz angústia, mas também nos possibilita refletir e mudar atitudes.

Sendo filho do Céu e da Terra, o Tempo pode nos tirar do chão ou nos manter completamente seguros, inabaláveis. Como qualquer remédio, só será o melhor se for aceito e, acima de tudo, bem administrado, para que possamos encontrar serenidade e equilíbrio.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

De petelecos, flores e amores

Às vezes o acaso nos pega de surpresa e nos deixa sem reação. Então, experimentamos um misto de sensações tão confusas e contraditórias que temos vontade de jogar tudo para o alto; chutar o balde mesmo.

Com o tempo, aprendemos que nessas situações o melhor é usar a velha tática de "respirar-fundo-e-contar-até-um-milhão" antes de tomar qualquer atitude. Em geral, respostas impensadas a acontecimentos aparentemente sem explicação resultam em precipitação e, posteriormente, arrependimento. 

A verdade é que essas pequenas (ou grandes...) surpresas, por mais desagradáveis que sejam, são petelecos que a vida dá na nossa orelha, bem de cantinho, para ninguém ver, com a intenção de nos manter atentos. Não no sentido de colocar uma pulga atrás da orelha, de maneira que a desconfiança e a insegurança prevaleçam sobre qualquer outro sentimento (Elvis já dizia: "We can't go on together with suspicious minds..."); mas de nos mostrar que não temos domínio completo sobre as coisas e, principalmente, sobre as pessoas que fazem parte da nossa vida. 

Ainda bem que não temos! Só assim aprendemos a valorizar o que conquistamos,  a amar quem nos ama, a cuidar de quem amamos. 

A metáfora da flor é um clichê muito explorado no cotidiano e na arte, mas a ideia de que o amor é como uma florzinha faz todo o sentido. A delicadeza de uma flor que precisa ser banhada por água e sol na medida certa e que, por vezes, é machucada pelo vento é facilmente comparável ao sentimento que chamamos de amor. Assim, não podemos impedir que o vento balance a flor, mas podemos protegê-la para que ele não a machuque de forma irreversível. E é, também, com delicadeza que devemos banhá-la de água e sol para que a flor se mantenha viva e colorida pelo maior tempo possível. A única diferença é que, por maior que seja o cuidado, a flor, normalmente, tem vida curta; o amor, por sua vez, se bem cuidado, não acaba nunca. Sim, eu acredito nisso.

Amar não é apenas reproduzir em alto e bom som a frase EU TE AMO. Amar é estar presente no dia-a-dia do outro, e, muito mais do que admirar as qualidades  - convenhamos, a coisa mais fácil do mundo é admirar as qualidades de alguém, é aceitar que nem sempre os desejos, as vontades e as curiosidades da pessoa que amamos é algo que nos faria feliz. Respeitados os limites do bom senso, da fidelidade, da lealdade e da confiança, não há razões para tempestades em copos d'água. 

Dessa forma, penso que a melhor maneira de encarar os petelecos da vida não é responder a eles com agressividade, mas sim encará-los como algo positivo; como oportunidades de conversar e esclarecer possíveis dúvidas ou angústias e, assim, fortalecer o sentimento que existe. Os ventos que balançam as flores podem sim ser apenas brisas que as movimentam suavemente, produzindo, no final das contas, um belo espetáculo da natureza. 

E o que seria a felicidade? A capacidade de aprender com as próprias experiências; de encarar a vida e suas vicissitudes com serenidade; de amar e ser amado, sem criar obstáculos desnecessários; de compreender que as pessoas que amamos não são projeções dos nossos próprios desejos, mas nem por isso são menos dignas de admiração e respeito; de ver a flor que cultivamos com dedicação e apreço crescer forte e bela dia a dia...? São infinitas as possibilidades de resposta a essa pergunta. Pode ser apenas uma, ou todas essas, e muitas outras mais. Não importa.

O que importa é perceber que, se por alguns instantes perdemos nosso chão, é para que possamos parar e refletir sobre as bases desse chão que só depende de nós mesmos para nos manter em pé, firmes.



quinta-feira, 17 de março de 2011

Da inspiração

Dedico meu 100º post a  pessoas muito especiais: meus alunos. São poucas as pessoas que podem bater no peito e dizer "amo meu trabalho". Graças a vocês, que me alegram, me instigam, às vezes me tiram do sério, me fazem chorar (principalmente de saudade, quando deixam a escola), e, acima de tudo, me inspiram, me incluo no restrito grupo de profissionais que se sentem realizados diariamente. 

Este ano estreei como professora de português da 8ªB no Colégio Don Luís Guanella. Devo confessar que foi com certo receio que aceitei a proposta de assumir uma turma de Ensino Fundamental. Nunca escondi minha preferência pelo Ensino Médio. Porém, como novos desafios são sempre estimulantes, achei que valeria a pena a tentativa.

As aulas começaram há menos de um mês, e já estou completamente apaixonada pelos "anjinhos" da 8ª série. Como é bom entrar numa sala de aula e ser bem recepcionada; propor atividades que são realizadas com empenho; perceber nos olhos de cada um a vontade de aprender. Não tenho palavras para descrever a minha alegria cada vez que dou "bom dia" e vejo que sou recebida com o mesmo entusiasmo que sinto por estar ali. Não há como explicar o sentimento que toma conta de mim quando paro para ouvir as explosões de ideias, comentários, sugestões que acontecem na turma em todas as aulas.

Sei que tenho em minhas mãos a enorme responsabilidade de não deixar que a chama se apague. Minha missão é continuar estimulando a sede de conhecimento e cultura que esses alunos tem. Queridos alunos da 8ªB, podem ficar tranquilos. Como diria o célebre Capitão Nascimento, missão dada é missão cumprida!

A vocês e a todos os demais alunos que fazem das minhas manhãs deliciosas aventuras diárias, muito obrigada por fazerem parte da minha vida.

Amo vocês!

sexta-feira, 11 de março de 2011

Das atitudes positivas - o poder do pensamento


Hoje, pela primeira vez desde que me conheço por gente que usa internet como ferramenta de trabalho e diversão e não tem paciência para ler e-mails inúteis, recebi uma piadinha no meu Gmail e, como havia sido enviada pelo meu pai, achei que deveria ler. 

Qual não foi minha alegria ao perceber que uma simples anedota representa justamente o estado de espírito que observei em meu pai na minha primeira visita a ele após a série de cirurgias a que ele foi submetido recentemente. 

Após a estadia com o meu velhinho em Curitiba durante o Carnaval, voltei para o RS aliviada e muito feliz por ter visto com meus próprios olhos o poder que atitudes positivas e pensamentos otimistas exercem sobre a saúde de uma pessoa. Hoje, ao ler a historinha da moça que perde os cabelos, me enchi de alegria com a certeza de que meu pai não estava simplesmente encenando o bom humor dele para me tranquilizar.

Aí vai, então, a tal piadinha e o texto que a acompanhava no e-mail:


A hipocondria da alma
"Certa vez uma mulher acordou pela manhã, olhou-se no espelho e percebeu que tinha somente três fios de cabelo na cabeça.
- Bom, disse ela, achou que hoje vou trançar os meus cabelos.
Assim ela fez e teve um dia maravilhoso.
No dia seguinte, ela acordou, olhou no espelho e viu que tinha somente dois fios de cabelo na cabeça.
- Hummm... O jeito é dividir o cabelo no meio, pensou em voz alta.
Assim ela fez e teve um dia magnífico.
Na manhã seguinte ela acordou, olhou no espelho e percebeu que tinha apenas um fio de cabelo na cabeça.
- Muito bem, o jeito será radicalizar no penteado, farei um 'rabo de
cavalo'. 
E assim ela fez e teve mais um dia divertido pela frente.
No dia seguinte, adivinhem o que aconteceu? Não havia mais nenhum fio de cabelo na cabeça. Então ela olhou para o seu reflexo no espelho e exclamou:
- Yehaaa! Não tenho que pentear o meu cabelo hoje!"

Essa história exemplifica que enxergamos a vida muito mais de acordo com o nosso estado mental do que como os fatos concretos se apresentam. Algumas pessoas se posicionam com atitudes positivas diante da vida e sem dúvida conseguirão transitar melhor entre os seus problemas e aproveitar bem mais as suas alegrias. Infelizmente, na contramão desse comportamento, encontramos pessoas que só vêem problemas ou defeitos em tudo o que encontram pela frente e em todos aqueles com quem convivem.



A vida é mesmo uma corda bamba, da qual estamos sujeitos a despencar a qualquer momento. Depende unica e exclusivamente de cada um de nós decidir se vamos atravessar a corda com atitudes e pensamentos que nos levem à terra firme com segurança, ou em queda livre num abismo sem perspectivas.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Da (in)segurança

Segundo o dicionário:

* insegurança: substantivo do gênero feminino que designa, entre outras coisas, falta de confiança em si próprio; inquietação;

* segurança: substantivo do gênero feminino que designa, também entre outras coisas, firmeza, certeza, convicção; tranquilidade de espírito.

Deixando o dicionário de lado:

Felicidade é poder afirmar com toda a certeza que a inquietação se transformou numa incrível e prazerosa tranquilidade de espírito. Felicidade maior ainda é poder agradecer a uma pessoa especial por ter proporcionado essa transformação.

Discurso de uma pessoa que vive hoje a melhor fase de sua vida e vem aperfeiçoando, dia a dia, a arte de ser feliz.





sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Aos meus amigos


"Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo. Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco. Quero-os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças. Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta. Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice. Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.''

Oscar Wilde

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Sarau do Pecado - Benjamim


"Zorza vê Ariela que atravessa a rua num saiote leviano, sob o sol do meio-dia, e pensa que seus encontros já valeriam pelo momento em que ela suspende a coxa para entrar no seu carro. Incrédulo, saboreia a passagem de Ariela para dentro do seu território, numa rara demonstração de que deseja pertencer-lhe. Ariela é orgulhosa e executa de maneira despachada o movimento que, aos olhos de Zorza, transcorre minuciosamente: seu pé esquerdo pisa o tapete de borracha, e o corpo ensolarado vem atrás, pouco a pouco, caindo na sombra por fatias. Se algum dia Ariela lhe concedesse três pedidos, Zorza não teria dúvida: pediria que ela entrasse três vezes no seu carro."

Chico Buarque, em Benjamim (Ed. Cia. das Letras, 2004, p.62)

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Da perfeição


Combinação exata de duas partes. Simetria total. Encaixe absoluto.
Fisicamente falando, isso é o amor.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Sarau do Pecado - Seminário dos Ratos


As formigas 
Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima. 
- É sinistro. 
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina. 
- Pelo menos não vi sinal de barata - disse minha prima. 
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho. 
- É você que estuda medicina? - perguntou soprando a fumaça na minha direção. 
- Estudo direito. Medicina é ela. 
A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho. 
- Vou mostrar o quarto, fica no sótão - disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. - O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles. 
Minha prima voltou-se: 
- Um caixote de ossos? 
A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de joelhos puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada. 
- Mas que ossos tão miudinhos! São de criança? 
- Ele disse que eram de adulto. De um anão. 
- De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados... Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal.- Tão perfeito, todos os dentinhos! 
- Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente, extra. Telefone, também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa - recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: - Não deixem a porta aberta senão meu gato foge. 
Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada. Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana. prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa. 
- Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele. 
Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até a madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria. 
- De onde vem esse cheiro? - perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. - Você não está sentindo um cheiro meio ardido? 
- É de bolor. A casa inteira cheira assim - ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama. 
No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto!, mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho. 
- Que é que você está fazendo aí? - perguntei. 
- Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo? 
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar. 
- São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida - estranhei.
- Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
- Está debaixo dela - disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. - Preto de formiga! Me dá o vidro de álcool. 
- Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora. 
- Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui. 
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e, como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho. 
- Esquisito. Muito esquisito. 
- O quê? 
- Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui? 
- Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda mais de anão. Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa vez foi o antigo pesadelo com os exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha, estudado. As seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campanhia. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto. 
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei.
- E as formigas?
- Até agora, nenhuma.
- Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando.
- Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? - Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas, então, quem?! 
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava. 
- Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo. 
Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia Flor de Maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho, que competia nas repetições com o tal sonho da prova oral, nele eu marcava encontro com dois namora dos ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica. 
- Elas voltaram. 
- Quem? 
- As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo. A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
- E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
- Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta, senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formigas, você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas se trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão... Estão se organizando. 
- Como, se organizando? 
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol. 
- Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral quejá está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando o seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e... Venha ver! 
- Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso? 
Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas desapareciam com a luz do dia. 
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro. 
- Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia - ela avisou. 
O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso. 
- Estou com medo. 
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir. 
- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam? 
Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, Acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga. 
- Voltaram - ela disse. 
Apertei entre as mãos a cabeça dolorida. - Estão aí?
Ela falava num tom miúdo, como se uma formiguinha falasse com sua voz. 
- Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena movimentação. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava... 
- O que foi? Fala depressa, o que foi? 
Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama. 
- Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto já está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
- Você está falando sério?
- Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
- Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
- Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta!
- E para onde a gente vai?
- Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto. Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito? 
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra. 
Lygia Fagundes Telles, em Seminário dos Ratos (contos, 1977)

Sarau do Pecado - Breakfast at Tiffany's

Cena final de Bonequinha de Luxo no romance de Truman Capote (1958) e no clássico filme de Blake Edwards, estrelando Audrey Hepburn (1961).  O cinema se apropriando da literatura e modificando-a, em busca do happy ending.


"Holly saiu do carro, levando o gato. Enquanto o embalava, coçou a cabeça e perguntou: 'Que tal? É o lugar certo para um sujeito durão como você. Latas de lixo. Ratos de sobra. Bandos de colegas para andar por aí. Então suma', ela disse e o largou. Como ele não se mexesse, e, em vez disso, erguesse a cara de bandido, questionando-a com os olhos amarelados de pirata, ela bateu o pé: 'Vá embora, já disse!'. Ele veio se esfregar na perna dela. 'Fora daqui!', ela gritou e pulou para dentro do carro, batendo a porta. 'Vá', ordenou ao motorista, 'vá, vá!'
Eu estava pasmo. 'Mas você não presta mesmo, não presta mesmo!'
Percorremos um quarteirão antes que ela dissesse alguma coisa. 'Já lhe contei. Nós nos encontramos um dia, na beira do rio: é só. Independentes, os dois. Ninguém fez promessa nenhuma. Nós nunca...', ela começou a dizer, mas a voz sumiu, e um tique e uma palidez involuntária tomaram seu rosto. O carro parara num cruzamento. Então ela abriu a porta, correu pela rua, e corri atrás dela.
Mas o gato já não estava na esquina em que fora deixado. Não havia nada, ninguém na rua, exceto um bêbado urinando e duas freiras negras tocando um rebanho de crianças que cantavam candidamente. Outras crianças emergiram das portas, e as mulheres se inclinaram nas janelas para ver Holly correndo pelo quarteirão, de um lado para o outro, entoando: 'Gato, gato, cadê você? Gato, gato!'. Persistiu até que um garoto de pele esburacada veio até ela, trazendo um gato velho pendurado pela nuca: 'Dona, quer um gatinho lindo? É só um dólar.'
A limusine nos seguira. Holly deixou que eu a conduzisse de volta. Junto à porta, hesitou; olhou para o que estava atrás de mim, para trás do garoto que ainda oferecia o gato ('Meio dólar. Vinte e cinco centavos, que tal? Vinte e cinco não é nada.'), e estremeceu; precisou segurar meu braço para continuar em pé. 'Ah, meu Deus! Nós éramos um do outro. Ele era meu.'
Então fiz uma promessa, disse que voltaria e encontraria o gato: 'Vou cuidar dele também. Prometo."
Ela sorriu, formou uma pontinha de sorriso sem alegria. 'E de mim?', ela sussurrou e estremeceu de novo. 'Estou com muito medo, rapaz. Isso mesmo, finalmente. Porque isso poderia continuar para sempre. Não saber o que é seu até a hora em que você joga fora. A coisa ficar preta não é nada. A gorda não é nada. Mas e isso agora? Estou com a boca seca; se fosse questão de vida ou morte, não conseguiria nem cuspir', entrou no carro e se afundou no banco. 'Desculpe, motorista. Vamos embora.'"
Truman Capote, em Bonequinha de Luxo (Ed. Cia. das Letras, 2005, p.93-94)


quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Sarau do Pecado - Um General na Biblioteca


"A Ovelha Negra"
Havia um país onde todos eram ladrões.
À noite, cada habitante saía, com a gazua e a lanterna, e ia arrombar a casa de um vizinho. Voltava de madrugada, carregado, e encontrava a casa arrombada.
E assim todos viviam em paz e sem prejuízo, pois um roubava o outro, e este, um terceiro, e assim por diante, até que se chegava ao último, que roubava o primeiro. O comércio naquele país só era praticado como trapaça, tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo era uma associação de delinquentes vivendo à custa dos súditos, e os súditos por sua vez só se preocupavam em fraudar o governo. Assim, a vida prosseguia sem tropeços, e não havia ricos nem pobres.
Ora, não se sabe como, ocorre que no país apareceu um homem honesto. À noite, em vez de sair com o saco e a lanterna, ficava em casa fumando e lendo romances. 
Vinham os ladrões, viam a luz acesa e não subiam.
Essa situação durou algum tempo: depois foi preciso fazê-lo compreender que, se quisesse viver sem fazer nada, não era essa uma boa razão para não deixar os outros fazerem. Cada noite que ele passava em casa era uma família que não comia no dia seguinte.
Diante desses argumentos, o homem honesto não tinha o que objetar. Também começou a sair de noite para voltar de madrugada, mas não ia roubar. Era honesto, não havia nada a fazer. Andava até a ponte e ficava vendo a água passar embaixo. Voltava para casa, e a encontrava roubada.
Em menos de uma semana, o homem honesto ficou sem um tostão, sem o que comer, com a casa vazia. Mas até aí tudo bem, porque era culpa sua; o problema era que seu comportamento criava uma grande confusão. Ele deixava que lhe roubassem tudo e, ao mesmo tempo, não roubava ninguém; assim, sempre havia alguém que, voltando para casa de madrugada, achava sua casa intacta: a casa que o homem honesto deveria ter roubado. O fato é que, pouco depois, os que não eram roubados acabaram ficando mais ricos que os outros e passaram a não querer mais roubar. E, além disso, os que vinham para roubar a casa do homem honesto sempre a encontravam vazia; assim, iam ficando mais pobres.
Enquanto isso, os que tinham se tornado ricos pegaram o costume, eles também, de ir de noite até a ponte, para ver a água que passava embaixo. Isso aumentou a confusão, pois muitos outros ficaram ricos e muitos outros ficaram pobres.
Ora, os ricos perceberam que, indo de noite até a ponte, mais tarde ficariam pobres. E pensaram: "Paguemos aos pobres para irem roubar para nós". Fizeram-se contratos, estabeleceram-se os salários, as percentagens: naturalmente, continuavam a ser ladrões e procuravam enganar-se uns aos outros. Mas, como acontece, os ricos tornavam-se cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.
Havia ricos tão ricos que não precisavam mais roubar e que mandavam roubar para continuarem a ser ricos. Mas, se paravam de roubar, ficavam pobres, porque os pobres os roubavam. Então, pagaram aos mais pobres dos pobres para defenderem as suas coisas contra os outros pobres, e assim instituíram a polícia e construíram as prisões.
Dessa forma, já poucos anos depois do episódio do homem honesto, não se falava mais de roubar ou de ser roubado, mas só de ricos ou de pobres; e, no entanto, todos continuavam a ser pobres.
Honesto só tinha havido aquele sujeito, e morrera logo, de fome.


Italo Calvino, em Um General na Biblioteca. (ed. Cia. das Letras, 2001, p.31-32)

Sarau do Pecado - O que se diz e o que se entende


"Fantasmas"
No tempo da babá Pedrina, havia tantos fantasmas que até as crianças, mesmo sem os verem, sabiam como eram e por onde andavam. Andavam pelos porões, pelos corredores, pelos sótãos, atravessavam certos quintais, paravam pelas encruzilhadas. Havia fantasmas de escravos e de seus antigos donos em tal abundância que se faziam mais dignos de louvores os velhos abolicionistas: que enorme quantidade de fantasmas produzira a escravidão!
Mas, terminado o cativeiro, não terminaram os fantasmas - talvez menos sofredores, menos desesperados, menos vingativos, agora; monarquistas, republicanos, conselheiros, oradores misturados a toda casta de ofícios e de todos os níveis sociais. Há quem negue os fantasmas: mas entre a negação e a inexistência de coisas, fenômenos ou fatos há uma distância considerável. E talvez o número dos que negam seja inferior ao dos que os afirmam.
Outro dia, li nos jornais que uns fantasmas, em São Paulo, mudavam de lugar os objetos de uma casa, traziam a cafeteira do fogão para a mesa, espalhavam os mantimentos na despensa, enfim, desarrumavam quanto encontravam e parece que tudo isso foi testemunhado por jornalistas, que costumam ser espíritos fortes, de tanto lidarem com os mais estranhos acontecimentos, todos os dias.
Este meu bairro das Laranjeiras parece ter sido outrora muito povoado de fantasmas, especialmente a Ladeira do Ascurra, segundo nos informa o caro Vieira Fazenda, que tanto se interessou por esta nossa querida cidade.
Há pouco tempo, soube que os sentinelas do Monumento aos Pracinhas, em lugar tão moderno e arejado, tinham ouvido vozes estranhas, em redor de si: mas procurou-se explicar que seria o vento batendo ali, e tudo foi vento e nada mais, como no poema de Edgar Poe.
Na Inglaterra, os fantasmas não causam tanta estranheza: creio que existem por toda parte, e são extremamente intelectualizados. Não existe um que escreve peças teatrais, e se acha tão identificado com a senhora que o recebe que esta, com exemplar comportamento, se separou de seu marido por se sentir mais casada com seu fantasma?
Não há, na Inglaterra, casas onde se pode ouvir boa música, sem haver dentro delas instrumento de espécie alguma? Dizem-me que os fantasmas ingleses até deixam fotografar!
Não falo dessas coisas por brincadeira: ao contrário, elas me inspiram curiosidade e respeito. Se nós não sabemos nem o que se passa em nossa própria casa, do outro lado de qualquer parede, como podemos saber o que se passa nos misteriosos lugares onde os fantasmas vivem? A nossa 'vã filosofia', como disse Shakespeare, não alcança muitas coisas deste mundo. E o mundo dos fantasmas é mais além. Os homens habituaram-se a falar de tudo superficialmente; e o torvelinho da vida de hoje quase não permite a ninguém deter-se para pensar. E adquirimos o hábito de sorrir com frivolidade para o que desconhecemos.
No entanto, as velhas Escrituras estão cheias de exemplos que nos deixam perplexos. A tecnologia descartou a contemplação, a intuição, o desejo sério de penetrar os profundos mistérios do mundo e da vida. O supérfluo tornou-se tão imprescindível que se perdeu de vista o verdadeiramente essencial.

Cecília Meireles, em O que se diz e o que se entende, crônicas. (Ed. Nova Fronteira, 1980, p. 44-45).

Sarau do Pecado - Correio Feminino

Clarice em versão gohst writer, dando dicas de sobrevivência para mulheres da segunda metade do século XX.
Curioso, no mínimo, para quem conhece um pouco da sua introspecção. Interessante como documento de época.

"O dever da faceirice"
Algumas mulheres, felizmente poucas, relegam a faceirice a um plano secundário, explicando esse desinteresse como "superioridade intelectual". Nada mais falso. A mulher moderna sabe que, apesar da evolução das ciências e das artes, o homem continua o mesmo, e o principal atrativo que encontra na mulher é a sua aparência física. Julgar que porque se casou com ele está dispensada de seduzi-lo é outro grave erro. O homem é volúvel. Sua busca da "mulher ideal" é apenas a forma romântica com que encobre essa volubilidade, e geralmente envelhecem sem descobrir realmente o que querem da mulher. Só sabem que a querem. Sempre bonita e renovada, se possível.
Um rosto bonito, uma figura elegante sempre exercem grande poder sobre eles. A mulher que ama a um deles tem de fazer de tudo para prendê-lo, portanto, e esse tudo é a sedução diária e constante. Eu sei, minha amiga! É cansativo isso, e um pouco tolo, mas que se há de fazer?
Se o seu marido está acostumado a vê-la despenteada, em chinelas, de roupa desleixada, sem pintura, aos poucos ele irá esquecendo a figurinha bonita que o atraiu antes, quando você só lhe aparecia enfeitada e perfumada. Começará a perguntar a si mesmo o que existe em você, afinal, de interessante... e a resposta é perigosa, minha cara! Por outro lado, a rua está fervilhando de mulheres bonitas, mais bonitas porque têm a atração do desconhecido e do proibido. Nenhum homem, numa hora dessas, tem imaginação bastante para ver, sob as carinhas de boneca encontradas na rua a mesma figura de mulher em chinelas, despenteada e mal cuidada que ele deixou em casa.
Renan, com grande sabedoria, já dizia: "A mulher, enfeitando-se, cumpre um dever; ela pratica uma arte, arte delicada, que é mesmo, até certo ponto, a mais encantadora das artes."
A faceirice é, portanto, obrigação para a mulher. Nem a mulher de negócios, nem a cientista, nem a mulher de letras, nem a esportista dispensam esse dever primordial para a conquista do homem. Afinal, podemos pensar deles o que quisermos, mas precisamos deles para completar a nossa felicidade, não é mesmo? Façamos, portanto, por conquistá-los.

Clarice Lispector, em Correio Feminino (coletânea de textos publicados em periódicos entre as décadas de 1950 e 1960, organizados por Aparecida Maria Nunes, ed. Rocco, 2006, p.15)

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

From Elizabethtown


“So you failed. Alright you really failed. You failed. You failed. You failed. You failed. You failed. You failed. You failed. You failed. You failed. You failed. You failed. You failed. You think I care about that? I do understand. You wanna be really great? Then have the courage to fail big and stick around. Make them wonder why you’re still smiling.”
Claire Colburn

Sarau do Pecado - Budapeste


"De qualquer modo naquele instante fechei o jogo, arregacei as mangas, pousei os dedos no teclado, zarpei de Hamburgo, adentrei a baía de Guanabara e preferi nem ouvir as fitas do alemão. Eu era um jovem louro e saudável quando adentrei a baía de Guanabara, errei pelas ruas do Rio de Janeiro e conheci Teresa. Ao ouvir cantar Teresa, caí de amores pelo seu idioma, e após três meses embatucado, senti que tinha a história do alemão na ponta dos dedos. A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era o meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa. No princípio, ela até gostou, ficou lisonjeada quando eu lhe disse que estava escrevendo um livro nela. Depois deu para ter ciúme, deu para me recusar seu corpo, disse que eu só a procurava a fim de escrever nela, e o livro já ia pelo sétimo capítulo quando ela me abandonou. Sem ela, perdi o fio do novelo, voltei ao prefácio, meu conhecimento da língua regrediu, pensei até em largar tudo e ir embora para Hamburgo. Passava os dias catatônico diante de uma folha de papel em branco, eu tinha me viciado em Teresa. Experimentei escrever alguma coisa em mim mesmo, mas não era tão bom, então fui a Copacabana procurar as putas. Pagava para escrever nelas, e talvez lhes pagasse além do devido, pois elas simulavam orgasmos que me roubavam toda a concentração. Toquei na casa de Teresa, estava casada, chorei, ela me deu a mão, permitiu que eu escrevesse umas breves palavras enquanto o marido não vinha. Passei a assediar as estudantes, que às vezes me deixavam escrever nas suas blusas, depois na dobra do braço, onde sentiam cócegas, depois na saia, nas coxas. E elas mostravam esses escritos às colegas, que muito os apreciavam, e subiam ao meu apartamento e me pediam que escrevesse o livro na cara delas, no pescoço, depois despiam a blusa e me ofereciam os seios, a barriga e as costas. E davam a ler meus escritos a novas colegas, que subiam ao meu apartamento e me imploravam para arrancar suas calcinhas, e o negro das minhas letras reluzia em suas nádegas rosadas. Moças entravam e saíam da minha vida, e meu livro se dispersava por aí, cada capítulo a voar para um lado. Foi quando apareceu aquela que se deitou em minha cama e me ensinou a escrever de trás para diante. Zelosa dos meus escritos, só ela os sabia ler, mirando-lhes no espelho, e de noite apagava o que de dia fora escrito, pra que eu jamais cessasse de escrever meu livro nela. E engravidou de mim, e na sua barriga o livro foi ganhando novas formas, e foram dias e noites sem pausa, sem comer um sanduíche, trancado no quartinho da agência, até que eu cunhasse, no limite das forças, a frase final: e a mulher amada, cujo leite eu sorvera, me fez beber a água com que havia lavado sua blusa."

Chico Buarque, em Budapeste. (Ed. Cia. das Letras, 2003, p.38-40)