Por extrema falta de criatividade, resolvi compartilhar com vocês um texto do Caio Fernando Abreu, que tem me feito muita companhia nos últimos tempos. Lá vai.
Extremos da paixão
Não, meu bem, não adianta bancar o distante:
lá vem o amor nos dilacerar de novo...
Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" – perguntariam os complacentes. Para estes últimos, que
m sabe, escrevo. E repito: andei pensando sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro(a) – mas a morte é inevitável, e portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor – essa pessoa – continua vivo(a), há então uma morte anormal. O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo - porque se poderia ter, já que está vivo(a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim do amor é: NEVER.
Pensando nisso, pensei um pouco depois em Boy George: meu-amor-me-abandonou -e-sem-ele-não-vivo-então-quero-morrer-e-quero-morrer-drogado. Lembrei de John Hincley Jr., apaixonado por Jodie Foster, e que escreveu a ela, em 1981: “Se você não me amar, eu matarei o presidente”. E deu um tiro em Ronald Reagan. A frase de Hincley é a mais significativa frase de amor do século XX. A atitude de Boy George – se não houver golpe publicitário nisso – é a mais linda atitude de amor do século XX. Penso em Werther, de Goethe. E acho lindo.
No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si pr
óprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira: compreendo, sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe, berra
ndo de pavor para o mundo insano, e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó. O que ou quem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya, ilusão, passatempo. E exigimos o eterno do perecível, loucos.
Depois, pensei também em Adele Hugo, filha de Victor Hugo. A Adele H. de François Truffaut, vivida por Isabelle Adjani. Adele apaixonou-se por um homem. Ele não a queria. Ela o seguiu aos Estados Unidos, ao Caribe, escrevendo cartas jamais respondidas, rastejando por amor. Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se no símbolo sem face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adele morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: “É para você, para você que eu escrevo” – dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar.
Andei pensando em Adele H., em Boy George e em John Hincley Jr. Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que – se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu. Que imensa miséria o grande amor – depois do não, depois do fim – reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.
Ai, que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa – muito mais sábio –, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, “o amor car(o,a) colega esse não consola nunca de núncaras”. E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.
Caio Fernando Abreu
O Estado de S. Paulo, 08/07/86.