quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Sarau do Pecado - Correio Feminino

Clarice em versão gohst writer, dando dicas de sobrevivência para mulheres da segunda metade do século XX.
Curioso, no mínimo, para quem conhece um pouco da sua introspecção. Interessante como documento de época.

"O dever da faceirice"
Algumas mulheres, felizmente poucas, relegam a faceirice a um plano secundário, explicando esse desinteresse como "superioridade intelectual". Nada mais falso. A mulher moderna sabe que, apesar da evolução das ciências e das artes, o homem continua o mesmo, e o principal atrativo que encontra na mulher é a sua aparência física. Julgar que porque se casou com ele está dispensada de seduzi-lo é outro grave erro. O homem é volúvel. Sua busca da "mulher ideal" é apenas a forma romântica com que encobre essa volubilidade, e geralmente envelhecem sem descobrir realmente o que querem da mulher. Só sabem que a querem. Sempre bonita e renovada, se possível.
Um rosto bonito, uma figura elegante sempre exercem grande poder sobre eles. A mulher que ama a um deles tem de fazer de tudo para prendê-lo, portanto, e esse tudo é a sedução diária e constante. Eu sei, minha amiga! É cansativo isso, e um pouco tolo, mas que se há de fazer?
Se o seu marido está acostumado a vê-la despenteada, em chinelas, de roupa desleixada, sem pintura, aos poucos ele irá esquecendo a figurinha bonita que o atraiu antes, quando você só lhe aparecia enfeitada e perfumada. Começará a perguntar a si mesmo o que existe em você, afinal, de interessante... e a resposta é perigosa, minha cara! Por outro lado, a rua está fervilhando de mulheres bonitas, mais bonitas porque têm a atração do desconhecido e do proibido. Nenhum homem, numa hora dessas, tem imaginação bastante para ver, sob as carinhas de boneca encontradas na rua a mesma figura de mulher em chinelas, despenteada e mal cuidada que ele deixou em casa.
Renan, com grande sabedoria, já dizia: "A mulher, enfeitando-se, cumpre um dever; ela pratica uma arte, arte delicada, que é mesmo, até certo ponto, a mais encantadora das artes."
A faceirice é, portanto, obrigação para a mulher. Nem a mulher de negócios, nem a cientista, nem a mulher de letras, nem a esportista dispensam esse dever primordial para a conquista do homem. Afinal, podemos pensar deles o que quisermos, mas precisamos deles para completar a nossa felicidade, não é mesmo? Façamos, portanto, por conquistá-los.

Clarice Lispector, em Correio Feminino (coletânea de textos publicados em periódicos entre as décadas de 1950 e 1960, organizados por Aparecida Maria Nunes, ed. Rocco, 2006, p.15)

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