quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Sarau do Pecado - O Filho Eterno


"Ele dormiu, ou quase dormiu, num sofá vermelho ao lado da ama alta de hospital, para onde trouxeram a mulher em algum momento da madrugada. A criança estaria no berçário, uma espécie de gaiola asséptica, que o fez lembrar do Admirável mundo novo: todos aqueles bebês um ao lado do outro, atrás de uma proteção de vidro, etiquetados e cadastrados para a entrada no mundo, todos idênticos, enfaixados na mesma roupa verde, todos mais ou menos feios, todos amassados, sustos respirantes, todos imóveis, de uma fragilidade absurda, todos tábula rasa, cada um deles apenas um breve potencial, agora para sempre condenados ao Brasil, e à língua portuguesa, que lhes emprestaria as palavras com as quais, algum dia, eles tentariam dizer quem eram, afinal, e para que estavam aqui, se é que uma pergunta assim pode fazer sentido.
Qual seria o seu filho? - aquele ali, mostrou a enfermeira solícita, e ele sorriu diante da criança imóvel, buscando um ponto de convergência. Alguma coisa de fora que o tocasse súbita, como um dedo de um anjo. Mas não, ele sorriu, invencível - é preciso criar esse ponto, que não cai do céu. Uma criança é uma ideia de uma criança, e a ideia que ele tinha era muito boa. Um bom começo. Mas aquela presença era também um nascimento às avessas, porque agora, talvez ele imaginasse, expulso do paraíso, estou do outro lado do balcão - não estou mais em berço esplêndido, não sou eu mais que estou ali, e ele riu, quase bêbado, a garrafinha vazia, inebriado do cigarro que não parava de fumar, naqueles tempos tolerantes. Como quem, prosaicamente, apenas perde um privilégio, o da liberdade. O que é uma palavra que, se objetivamente quer dizer muio (estar dentro da cadeia, estar fora da cadeia, por exemplo; poder dizer e escrever tudo e não poder dizer nem escrever nada, outro exemplo prático - o Brasil está nos últimos minutos de uma ditadura), subjetivamente, em outra esfera, nos dá o dom da ilusão. Às vezes basta. Livre significa: sozinho. Claro, tem a mulher, por quem ele alimenta uma nítida mas insuspeitada paixão (ele nunca foi precoce), mas ao mesmo tempo tem de prestar muita atenção em si mesmo, juntas aqueles pedaços disformes da insegurança, um garoto tão desgraçadamente incompleto, para olhar mais atento para ela, o que só conseguirá fazer anos depois; tem a mulher, mas eles não nasceram juntos. Podem se separar, e a ordem do mundo se mantém. Mas o filho é um outro nascimento: ele não pode se separar dele. Todas as palavras que o novo pai recebeu ao longo da vida criaram nele esta escravidão consentida, esse breve mas poderoso imperativo ético que se faz em torno de tão pouca coisa; quem é a criança que está ali? O que temos em comum? O que, afinal, eu escolhi? Como conciliar a ideia fundamental de liberdade individual, que move a fantástica roda do Ocidente, ele declama, com a selvageria da natureza bruta, que por uma sucessão inextricável de acasos me trouxe agora essa criança? O próprio Rousseau abandonou os filhos, ele se lembra, divertindo-se. Muito melhor o Admirável mundo novo, aquela assepsia do nascimento sem dores nem pais. Vivemos grudados, mas, em vez de sentir náusea da imagem - a invencível viscosidade das relações humanas - , ele sorri diante daquele pequeno joelho respirante e empacotado do outro lado do vidro: isso parece bom e bonito, o filho da primavera. Relembrou a data: madrugada do dia 3 de novembro de 1980."

Cristóvão Tezza, em O Filho Eterno. (Ed. Record, 2010, p.19-21)

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