"Fantasmas"
No tempo da babá Pedrina, havia tantos fantasmas que até as crianças, mesmo sem os verem, sabiam como eram e por onde andavam. Andavam pelos porões, pelos corredores, pelos sótãos, atravessavam certos quintais, paravam pelas encruzilhadas. Havia fantasmas de escravos e de seus antigos donos em tal abundância que se faziam mais dignos de louvores os velhos abolicionistas: que enorme quantidade de fantasmas produzira a escravidão!
Mas, terminado o cativeiro, não terminaram os fantasmas - talvez menos sofredores, menos desesperados, menos vingativos, agora; monarquistas, republicanos, conselheiros, oradores misturados a toda casta de ofícios e de todos os níveis sociais. Há quem negue os fantasmas: mas entre a negação e a inexistência de coisas, fenômenos ou fatos há uma distância considerável. E talvez o número dos que negam seja inferior ao dos que os afirmam.
Outro dia, li nos jornais que uns fantasmas, em São Paulo, mudavam de lugar os objetos de uma casa, traziam a cafeteira do fogão para a mesa, espalhavam os mantimentos na despensa, enfim, desarrumavam quanto encontravam e parece que tudo isso foi testemunhado por jornalistas, que costumam ser espíritos fortes, de tanto lidarem com os mais estranhos acontecimentos, todos os dias.
Este meu bairro das Laranjeiras parece ter sido outrora muito povoado de fantasmas, especialmente a Ladeira do Ascurra, segundo nos informa o caro Vieira Fazenda, que tanto se interessou por esta nossa querida cidade.
Há pouco tempo, soube que os sentinelas do Monumento aos Pracinhas, em lugar tão moderno e arejado, tinham ouvido vozes estranhas, em redor de si: mas procurou-se explicar que seria o vento batendo ali, e tudo foi vento e nada mais, como no poema de Edgar Poe.
Na Inglaterra, os fantasmas não causam tanta estranheza: creio que existem por toda parte, e são extremamente intelectualizados. Não existe um que escreve peças teatrais, e se acha tão identificado com a senhora que o recebe que esta, com exemplar comportamento, se separou de seu marido por se sentir mais casada com seu fantasma?
Não há, na Inglaterra, casas onde se pode ouvir boa música, sem haver dentro delas instrumento de espécie alguma? Dizem-me que os fantasmas ingleses até deixam fotografar!
Não falo dessas coisas por brincadeira: ao contrário, elas me inspiram curiosidade e respeito. Se nós não sabemos nem o que se passa em nossa própria casa, do outro lado de qualquer parede, como podemos saber o que se passa nos misteriosos lugares onde os fantasmas vivem? A nossa 'vã filosofia', como disse Shakespeare, não alcança muitas coisas deste mundo. E o mundo dos fantasmas é mais além. Os homens habituaram-se a falar de tudo superficialmente; e o torvelinho da vida de hoje quase não permite a ninguém deter-se para pensar. E adquirimos o hábito de sorrir com frivolidade para o que desconhecemos.
No entanto, as velhas Escrituras estão cheias de exemplos que nos deixam perplexos. A tecnologia descartou a contemplação, a intuição, o desejo sério de penetrar os profundos mistérios do mundo e da vida. O supérfluo tornou-se tão imprescindível que se perdeu de vista o verdadeiramente essencial.
Cecília Meireles, em O que se diz e o que se entende, crônicas. (Ed. Nova Fronteira, 1980, p. 44-45).
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